
“Irmão de Igreja”: Abuso, Silêncio e Alerta a Pais e Lideranças
Descubra como abusos são silenciados em ambientes adventistas e por que pais e líderes devem redobrar o cuidado. Leia o alerta completo e proteja sua família
1. Uma adolescência sozinha na igreja
A narradora situa sua história há cerca de 30 anos, quando tinha entre 16 e 17 anos e começava a frequentar a igreja sozinha, já que seus pais não eram cristãos praticantes e não apoiavam sua ida aos cultos. Ela caminhava cerca de 20 minutos de casa até a igreja, inclusive à noite, sem companhia, o que a deixava em posição de grande vulnerabilidade social e emocional dentro daquele ambiente.
Ela lembra que, naquela época, uma jovem era “mais inocente” do que hoje: não havia a mesma circulação de informações sobre assédio, violência sexual e estupro, nem a mesma linguagem de proteção à vítima. Isso faz com que, olhando para trás, ela perceba como demorou para entender que aquilo que vivia era abuso — e não apenas “brincadeira”, “carinho” ou “atenção” de um “irmão da igreja”.
2. A tática do abusador: da saudação forçada ao assédio aberto
O agressor em questão é apresentado como um “irmão” casado, figura respeitada na comunidade. Ele começou de forma aparentemente inofensiva: cumprimentava, segurava a mão com força, apertava o braço, sempre em nome de uma suposta cortesia, um “cumprimento caloroso”.
A adolescente, tímida e inocente, sentia desconforto, mas racionalizava: “Ele é da igreja, deve estar só sendo gentil”. Esse é um padrão clássico de abusadores em ambientes religiosos: aproximam-se em gestos socialmente aceitáveis, mas carregados de invasão física e emocional, explorando a confiança e a culpa da vítima.
Com o tempo, o comportamento escalou:
Ele passou a segurar forte o braço, mesmo quando ela tentava se afastar.
Começou a mexer no cabelo enquanto ela estava na fila para cumprimentar o pregador, insistindo mesmo quando ela tirava a mão dele.
Fazia comentários em voz alta, chamando-a de “minha namorada”, elogiando sua beleza, expondo-a diante de outros, o que a envergonhava profundamente.
Tudo isso acontecia frequentemente na saída dos cultos, na presença de outras pessoas e com a esposa dele ao lado. A jovem se sentia confusa: por que a esposa não reagia? Por que ninguém dizia nada? Com o tempo, descobriria que aquela mulher também era vítima, sofrendo agressões físicas e psicológicas em casa.
3. A reação da comunidade: silêncio, minimização e impunidade
A narradora, envergonhada e sem repertório emocional, não tinha coragem de confrontar o agressor. Começou a evitar a fila, a desviar do caminho, mas o medo e o nojo iam crescendo. Uma mulher da igreja chegou a aconselhá-la a dizer “não encosta em mim”, e ela tentou se impor, mas o comportamento dele não mudou.
O agressor, então, passou a repetir o padrão com outra moça, ainda mais vulnerável: uma jovem com sequelas neurológicas de um acidente, que tinha idade cronológica de adolescente, mas agia como criança. Essa menina também se sentiu desconfortável, contou para a mãe, e a mãe brigou com o “irmão”. Porém, o caso não foi levado à comissão da igreja, não houve processo disciplinar formal, nem proteção institucional real — e o assunto “morreu”. O abusador apenas deslocou o foco de uma vítima para outra, sem qualquer consequência significativa.
Quando o assédio chegou à esposa de um ancião — uma mulher casada com um líder de referência na igreja —, o caso finalmente foi levado à comissão. Ainda assim, “não deu em nada”: o homem negou intenção sexual, alegou que não era falta de respeito, e, mais uma vez, tudo terminou em impunidade. Essa dinâmica reforça uma mensagem perversa: se nem quando a esposa de um líder é assediada a estrutura reage com firmeza, quanto menos para proteger adolescentes tímidas e jovens com deficiência.
4. O prolongamento do trauma e o ciclo da violência doméstica
O tempo passou, a narradora foi amadurecendo e, já mais velha, finalmente conseguiu impor limites mais firmes: cortava o contato, recusava convites, evitava ir à casa dele, mesmo quando ele usava pretextos religiosos (“estudo”, “ajuda em algo”). Ainda assim, ele insistia, mandava mensagens, tentava reativar a aproximação.
Mesmo após ela ter deixado a igreja, anos mais tarde, ele ainda a procurou, enviando mensagem dizendo que “precisava falar” com ela. Dessa vez, ela o bloqueou. O trauma, porém, permaneceu vivo: ela carrega até hoje nojo, medo e um sentimento de culpa e impotência, por não ter sabido lidar com a situação na adolescência — algo que, na verdade, não era responsabilidade dela, mas dos adultos e da liderança.
A história da esposa do agressor agrava ainda mais o quadro. Descobre-se que ela era agredida fisicamente em casa, assim como os filhos. Em uma visita pastoral (ou de amigos), a narradora e o então companheiro presenciam o homem agredindo a esposa na frente deles. Ou seja, trata-se de um padrão de violência continuado, múltiplo: contra a esposa, contra os filhos, contra adolescentes e jovens da igreja.
E, ainda assim, a estrutura de liderança:
Não o disciplinou de forma efetiva.
Não o expôs à comunidade como agressor.
Não protegeu as vítimas nem criou regras claras de segurança.
5. Outras formas de assédio na igreja: um problema sistêmico
O relato não é um caso isolado, mas um exemplo de um problema mais amplo. A narradora menciona:
Amigos homens que foram assediados por mulheres mais velhas da igreja, que passavam a mão em suas pernas ou os convidavam para casa quando o marido não estava.
Esses rapazes sentiam vergonha de denunciar, com medo de terem sua masculinidade questionada, o que mostra que o abuso também atinge homens, especialmente jovens, e que estereótipos de gênero dificultam ainda mais a denúncia.
Situações em banheiros de igrejas, em que homens saíam do banheiro masculino, piscando, fazendo gestos obscenos, saindo com a porta aberta, às vezes ainda ajeitando a roupa, diante de adolescentes que iam ao banheiro feminino ao lado.
Ela destaca que já viu “muitas coisas” assim e que conhece “muitos casos” semelhantes, o que configura um cenário sistêmico: um ambiente religioso em que o discurso moral é rígido, mas a prática de proteção é frágil; em que a honra institucional importa mais do que o cuidado com vítimas.
6. O silêncio forçado: medo de perder a fé, a igreja e a família
Um elemento central do sofrimento da narradora é o silêncio imposto pelas circunstâncias. Ela não podia contar aos pais, porque tinha certeza de que eles a proibiriam de continuar indo à igreja. Como desejava manter sua frequência e seu vínculo com a fé, decidiu calar. Também não se sentia à vontade para falar com líderes, talvez por medo de não ser acreditada, de ser culpabilizada ou de ver o assunto abafado — como de fato aconteceu com outras vítimas.
Esse dilema é típico de vítimas em contextos religiosos: denunciar pode significar, na prática, perder o único espaço de socialização, espiritualidade e pertencimento que possuem. Muitas acabam optando por suportar caladas, por tentar lidar sozinhas, até que, mais velhas, finalmente se afastam da igreja para proteger a própria saúde mental.
A narradora reconhece que só conseguiu pôr fim ao ciclo quando amadureceu, ganhou voz, e, finalmente, teve coragem de cortar completamente o contato. Mas ela se pergunta: quantas crianças e adolescentes continuam hoje na mesma situação, sem voz, sem saber nomear o que vivem, sem adultos que as protejam?
7. Um alerta urgente a pais, líderes e igrejas
A narradora encerra sua fala transformando sua dor em alerta. Ela se dirige diretamente a pais, mães e responsáveis:
Não deixem seus filhos sozinhos na igreja, na Escola Sabatina, no clube de desbravadores, em programações noturnas.
Esperem na porta, busquem pessoalmente, observem de perto com quem seus filhos se relacionam, quem se aproxima, que tipo de contato físico há.
Entendam que o agressor pode ser homem ou mulher, jovem ou adulto, líder ou membro comum — e que a aparência de piedade e religiosidade não é garantia de caráter.
Ela também aponta a responsabilidade das igrejas: muitas “não tomam providência quanto a isso”. Casos são abafados, vítimas não são acolhidas, comissões são superficiais, e o agressor volta à ativa como se nada tivesse acontecido. A mensagem que fica para quem sofre é: “Aqui você não está protegido”.
8. Análise final: quando a espiritualidade vira terreno fértil para o abuso
Este relato revela um padrão preocupante de como ambientes religiosos, especialmente quando idealizados como “lugares seguros”, podem se tornar campos férteis para abusadores. Alguns elementos se destacam:
Confiança cega na “condição espiritual” de alguém: o fato de ser “irmão de igreja” e “casado” gera uma presunção de integridade que encobre comportamentos predatórios.
Cultura do silêncio e da vergonha: vítimas se sentem culpadas, com medo de destruir reputações, “escandalizar” a igreja ou serem vistas como responsáveis pelo assédio.
Liderança omissa ou negligente: comissões que não resultam em medidas protetivas reais comunicam, na prática, que o agressor pode continuar, desde que negue e mantenha a fachada.
Naturalização do abuso como “brincadeira” ou “exagero da vítima”: toques forçados, comentários sexualizados e aproximações invasivas são minimizados, sobretudo quando feitos em público, mascarados de “brincadeira” ou “carinho”.
Falta de políticas claras de proteção a menores e vulneráveis: ausência de protocolos, treinamentos e canais de denúncia seguros faz com que casos se repitam e se multipliquem no subsolo da comunidade.
Contar uma história como essa é um ato de coragem e também de serviço à comunidade. Ao expor o que viveu, a narradora rompe um pacto de silêncio que protege agressores e deixa vítimas isoladas. Ela transforma sua experiência em alerta: fé não é blindagem contra o mal; ambientes religiosos precisam de vigilância redobrada, regras claras, responsabilização séria e acolhimento radical às vítimas, especialmente crianças e adolescentes.
Que relatos como este sirvam, de fato, para pais, líderes e comunidades reformarem práticas, implementarem protocolos de proteção e deixarem claro, em teoria e na prática: abuso não é “exagero”, não é “mal entendido”, não é “brincadeira de irmão”. É pecado, é violência e exige resposta firme, justa e imediata.