
O Lado Oculto da Colportagem Adventista: Sonhos, Dívidas e Confisco de Bens
Análise crítica da colportagem adventista revela práticas abusivas e relatos de confisco de bens. Descubra riscos ocultos e reflexões bíblicas essenciais.
Este depoimento é de um ex-colportor adventista que relata sua experiência traumática nas campanhas de colportagem, incluindo a confiscação de seu notebook como pagamento de dívidas não quitadas ao final de uma campanha. Abaixo está o artigo analítico.
O Lado Oculto da Colportagem Adventista: Sonhos, Dívidas e Confisco de Bens
1. O sonho de estudar teologia e a porta de entrada: a colportagem
O narrador começa explicando que, aos 17 anos, no terceiro ano do ensino médio, sentiu o desejo sincero de estudar teologia e trabalhar para a igreja. Ele enfatiza que não era pelos benefícios materiais (como aluguel pago ou bolsas), mas por genuíno interesse vocacional.
No sistema educacional adventista brasileiro, existem quatro faculdades de teologia principais: UNASP (Engenheiro Coelho, SP), FADBA (Bahia), FAAMA (Amazonas ou Pará) e FAP (Paraná). Para estudar nessas instituições, jovens de famílias de baixa renda são incentivados a participar do Projeto Colportagem, onde vendem livros adventistas por um período curto (1 mês e meio) para arrecadar o valor equivalente a um semestre de estudos.
O sistema funciona em ciclos ao longo do ano:
Campanha de Férias (dezembro/janeiro e junho/julho): para estudantes em férias escolares.
Sonhando Alto (março-maio e agosto-outubro): para jovens que não estão estudando, que "sonham" com a faculdade enquanto trabalham.
A proposta parece nobre: trabalho evangelístico gerando sustento para formação teológica. Mas, como o relato mostrará, a realidade é muito mais complexa e, por vezes, abusiva.
2. Três campanhas, três resultados diferentes
2.1. Primeira campanha: São Paulo
O narrador fez sua primeira campanha em São Paulo. Embora tenha saído "positivo" (com saldo favorável), o valor foi muito baixo, apenas alguns poucos reais. A mentalidade incentivada pelos líderes era: "Tudo bem, não deu dessa vez, mas na próxima você consegue. Continue tentando".
Durante essa campanha, ele também sofreu um assalto e perdeu um celular que havia acabado de pagar em 12 parcelas — poucos meses após quitar a última prestação. Esse evento já marca a vulnerabilidade dos colportores, que circulam sozinhos, em áreas desconhecidas, muitas vezes perigosas.
2.2. Segunda campanha: Santa Catarina (Sonhando Alto)
Na segunda campanha, em Santa Catarina, o resultado foi novamente positivo, mas modesto: cerca de R$ 500. Ele voltou para casa por poucos dias e logo retornou para outra campanha de férias (meio do ano) na mesma região.
2.3. Terceira campanha: Santa Catarina (região norte) — o confisco
Nessa terceira campanha, ele foi enviado para uma área diferente, no interior, "comportando em aberto" — isto é, sem supervisão direta na casa de campanha, acompanhado apenas de outro colega. Essa modalidade é permitida apenas para colportores com "experiência" (duas campanhas anteriores), pois a administração confia que não vão fugir ou desistir.
Porém, desta vez, ele não vendeu bem. Ao final, no momento do "acerto de contas", descobriu que estava negativo em cerca de R$ 800 (valores de 2014-2015). O "acerto de contas" é o momento em que o colportor paga:
Sua parte proporcional do aluguel da casa de campanha.
Os livros de amostra que recebeu (como A Grande Esperança, Vida de Jesus, Caminho a Cristo, etc.).
Outras despesas administrativas.
O líder da campanha exigiu pagamento imediato. O jovem não tinha dinheiro, sua família era humilde e não podia ajudar. O líder sugeriu que ele ligasse para o pai ou um tio. Ele insistiu que não tinha como pagar.
Então o líder perguntou: "Você tem celular?" Ele mostrou o aparelho simples (sem WhatsApp, apenas para ver horas), que não tinha valor. O líder não aceitou. "Você tem notebook?" Sim, ele tinha levado um notebook para a campanha. O líder então disse: "Então você me dá esse notebook e zera sua dívida".
O narrador relata que, pressionado, sem dinheiro, sem apoio, com a passagem de volta já comprada e querendo apenas ir embora, ele entregou o notebook. Foi confiscado como pagamento.
3. A lógica do confisco: prática sistemática ou isolada?
O narrador deixa claro que isso não era novidade para ele. Na primeira campanha, em São Paulo, ele já havia presenciado um caso semelhante: um jovem que saiu antes do tempo (desistiu) teve o celular tomado pelo líder como pagamento de despesas. No dia seguinte, o líder estava vendendo o celular para outros colportores.
Essa prática revela uma lógica institucional perversa:
Pressão por resultados financeiros imediatos: não importa se o jovem não vendeu por falta de habilidade, por território difícil, por crise econômica ou por azar. A associação quer o dinheiro de volta.
Confisco de bens pessoais como garantia: celulares, notebooks, relógios — qualquer coisa que tenha valor pode ser tomada para "zerar a dívida".
Ausência de alternativas humanizadas: não se oferece parcelamento, não se notifica a associação local para cobrança futura, não se dá chance de o jovem trabalhar e pagar depois. A cobrança é imediata e, se necessário, via confisco.
O narrador compara a situação com a ação de um banco que vai à casa do devedor e retoma o carro. Mas um banco tem contrato, processo legal, ordem judicial. Aqui, não há nada disso: apenas pressão moral, medo e autoridade religiosa.
4. O medo, a culpa e o silêncio
Após voltar para casa, o jovem ficou profundamente desanimado. Pensou em processar a igreja, mas enfrentou vários obstáculos internos:
Medo espiritual: "Se eu processar a igreja, vou perder minha salvação? Deus vai me abandonar?"
Medo social: "As pessoas vão achar que sou rebelde, ingrato, que estou atacando a obra de Deus."
Falta de informação jurídica: ele não conhecia advogados; o único que conhecia era alguém para quem havia dado estudos bíblicos, e tinha medo de que o advogado, sendo adventista ou simpatizante, não o defendesse.
Finalmente, tomou coragem e procurou o advogado. A resposta foi clara: "Você não poderia ter sido impedido de voltar para casa sem pagar. Se fosse privado de ir embora, isso seria cárcere privado". O advogado ficou sério, reconheceu a gravidade, mas informou que cobraria cerca de R$ 800 pelo processo — o mesmo valor do notebook. Economicamente, não compensava processar.
O jovem, desempregado, sem recursos, desistiu. Mas deixa claro: "Se fosse hoje, com a mentalidade que tenho agora, eu processaria sim".
5. A alternativa justa que nunca foi oferecida
O narrador faz uma reflexão poderosa: por que não permitiram que ele parcelasse a dívida?
A solução cristã e humanizada seria simples:
Registrar a dívida de R$ 800 na associação local.
Permitir que o jovem voltasse para casa, arrumasse emprego.
Criar um plano de pagamento (por exemplo, 10 parcelas de R$ 80).
Confiar que, como cristão comprometido, ele honraria a dívida.
Mas isso não foi feito. Por quê? Porque o sistema não confia nos jovens. E porque o foco é o dinheiro imediato, não o desenvolvimento espiritual ou vocacional do jovem. A lógica é comercial, não pastoral.
6. O perfil dos líderes de campanha
O narrador comenta que, de todos os líderes de colportagem que conheceu, apenas um tinha perfil pastoral verdadeiro. Os demais eram apenas "mais um" — pessoas focadas em resultados, metas, números, não em cuidar de jovens vulneráveis longe de casa, muitas vezes pela primeira vez.
Essa observação é devastadora: se a colportagem é apresentada como "escola de evangelismo", mas os líderes não têm coração de pastores, o que está sendo ensinado, de fato? Técnicas de venda sob pressão? Submissão a autoridade arbitrária? Medo de consequências financeiras?
7. O impacto psicológico e espiritual
O narrador descreve como ficou desanimado, sem chão, triste. Esse tipo de experiência não forma vocações; destrói fé. Ele pensou em desistir completamente do ministério, sentiu-se enganado, explorado.
Muitos jovens passam por isso e nunca contam a ninguém, por vergonha, medo ou culpa internalizada. O narrador decidiu compartilhar sua história justamente para romper o silêncio e encorajar outros a denunciarem abusos semelhantes.
8. A questão do dízimo e da hierarquia financeira
No final, ele faz uma conexão importante: "Na igreja adventista, se você não dá o dízimo, não pode ter cargo de liderança". Isso revela a centralidade do dinheiro na estrutura de poder adventista. O dízimo não é apenas uma prática espiritual; é critério de elegibilidade para liderança.
Ele questiona: "O foco é pregar o evangelho ou é dinheiro?"
A resposta implícita, baseada em sua experiência: o foco é dinheiro. A colportagem não é, primariamente, evangelismo; é captação de recursos. Os jovens não são, primariamente, vocacionados em formação; são força de trabalho barata, descartável, substituível.
9. Um alerta a pais e jovens
O narrador encerra com um alerta direto:
Se você está pensando em colocar seu filho na colportagem, saiba que, se ele não vender bem, a associação pode tomar o celular, o notebook ou qualquer bem que ele tenha como "pagamento".
Se você não puder depositar o dinheiro via Pix imediatamente, eles vão confiscar.
Muitos jovens do Nordeste, do Sul, de vários lugares vão colportar em outros estados e passam por isso.
Isso deixa jovens desanimados, tristes, sem chão — exatamente o oposto do que deveria fazer um programa de formação ministerial.
Ele conclui perguntando: "Será que o foco realmente é pregar o evangelho?"
10. Análise final: exploração disfarçada de vocação
Este relato expõe uma realidade obscura dentro do sistema adventista: a colportagem, que deveria ser uma ponte entre jovens pobres e a educação teológica, frequentemente se transforma em armadilha financeira e psicológica.
Elementos críticos do sistema:
Pressão de vendas em curto prazo: 1 mês e meio para arrecadar o equivalente a um semestre inteiro de faculdade é uma meta brutal, especialmente em tempos de crise econômica e resistência cultural a vendas porta a porta.
Ausência de suporte real: jovens são mandados sozinhos para regiões desconhecidas, sem treinamento adequado, sem rede de apoio, sem segurança.
Confisco de bens como política de cobrança: tomar celulares, notebooks e outros bens pessoais como pagamento de dívidas contraídas em campanhas mal-sucedidas é, no mínimo, abusivo; no pior, pode configurar apropriação indébita ou constrangimento ilegal.
Medo e culpa como ferramentas de controle: jovens não processam, não denunciam, não questionam, porque internalizam a ideia de que "atacar a igreja é atacar a Deus".
Foco financeiro, não pastoral: líderes de campanha agem como gerentes de vendas, não como formadores de ministros. O objetivo é fechar contas, não cuidar de almas.
Esse testemunho deveria gerar indignação coletiva dentro e fora do adventismo. Não se trata de um "caso isolado"; o próprio narrador viu outros jovens passarem pelo mesmo. É um padrão sistêmico, e onde há padrão, há responsabilidade institucional.
Jovens que sonham com o ministério merecem ser acolhidos, treinados, protegidos e apoiados — não explorados, confiscados e silenciados. Quando uma igreja trata vocacionados como devedores e credores como autoridade espiritual, ela deixou de ser comunidade de fé para se tornar máquina de arrecadação. E isso não honra a Deus; desonra profundamente o evangelho.