
O Profeta do Pânico: Como Michelson Borges Usa Trump e o "Project 2025" para Ressuscitar o Medo Adventista
Análise crítica mostra como Michelson Borges distorce o Project 2025 e Trump para alimentar o medo adventista. Descubra a verdade e desafie essa narrativa
No ecossistema da teologia adventista do sétimo dia, o medo não é apenas uma emoção; é um combustível. Sem a iminência de uma perseguição global, a identidade do movimento enfraquece. Recentemente, o influenciador adventista Michelson Borges encontrou um novo filão de ouro para reabastecer esse tanque de ansiedade: a interseção entre Donald Trump e o documento político conservador conhecido como Project 2025.
Em vídeos e postagens recentes, Borges abandonou a cautela jornalística para abraçar abertamente a narrativa conspiratória. Ele alega que o apoio de Trump a esse projeto é o sinal definitivo de que os Estados Unidos estão prestes a cumprir a profecia de Apocalipse 13, impondo a guarda do domingo (a "Marca da Besta") e unindo o Estado à Igreja. No entanto, uma análise detalhada das fontes primárias — o próprio texto do Project 2025 e os escritos originais de Ellen White — revela que Borges está construindo um castelo de cartas baseado em distorções textuais, omissões deliberadas e uma teologia do século XIX que colide frontalmente com a realidade política do século XXI.
Este artigo disseca a anatomia dessa conspiração, provando que o "perigo iminente" pregado por Borges não passa de uma ficção teológica projetada para manter os fiéis em estado de alerta e dependência institucional.
1. A Anatomia da Distorção: O Que o Project 2025 Realmente Diz
A pedra angular da nova teoria de Borges é a seção do Project 2025 (intitulada Mandate for Leadership) que trata do Departamento do Trabalho. Borges destaca com alarde o termo "Sabbath Rest" (Descanso Sabático) encontrado no documento, sugerindo que isso é um código para a imposição religiosa do domingo.
Ao ler o documento original, porém, a narrativa desmorona. A proposta do Heritage Foundation não é teocrática, mas trabalhista. O texto sugere uma alteração no Fair Labor Standards Act para incentivar que trabalhadores recebam horas extras (time and a half) se trabalharem no dia de seu descanso religioso, seja ele qual for.
O documento diz explicitamente:
"O Congresso deve encorajar o descanso comunal alterando a Lei de Normas Justas de Trabalho... exigindo que os empregadores paguem aos empregados horas extras pelo trabalho realizado no sábado cristão [domingo]... ou no dia de descanso religioso correspondente à fé do empregado."
— Project 2025, p. 589 (Tradução e grifo nossos).
A Omissão de Borges:
Michelson Borges omite convenientemente a cláusula de liberdade religiosa inclusiva. A proposta visa proteger o tempo de família e o descanso religioso de todos. Para um judeu ou um adventista, essa lei, se aprovada, garantiria teoricamente o pagamento de horas extras pelo trabalho no sábado bíblico (Shabat). Longe de ser um decreto de perseguição que proíbe a guarda do sábado, a proposta, ironicamente, tornaria a guarda do sábado financeiramente mais vantajosa e legalmente protegida.
Ao transformar uma política de proteção trabalhista (que ecoa o descanso semanal remunerado existente em quase todas as democracias) em um "Decreto de Morte", Borges demonstra que sua lealdade não é aos fatos, mas à necessidade de validar a profecia a qualquer custo.
2. Trump, Israel e a Cegueira Profética
A narrativa de Borges colide com um obstáculo geopolítico intransponível: a relação de Donald Trump com o Estado de Israel e o judaísmo ortodoxo.
A escatologia adventista clássica, formulada por Ellen White na década de 1880, prevê que os Estados Unidos se aliarão ao Papado para perseguir os "guardadores do sábado". No entanto, a realidade política de Trump aponta para a direção oposta.
Trump foi o presidente que reconheceu Jerusalém como capital de Israel, que tem uma filha (Ivanka) convertida ao judaísmo ortodoxo e que guarda o sábado rigorosamente, e que cercou-se de conselheiros judeus observantes. A ideia de que uma administração Trump lideraria uma perseguição global contra os guardadores do sábado (adventistas) enquanto protege e exalta os guardadores do sábado originais (judeus) é, no mínimo, esquizofrênica.
Borges ignora essa contradição. Ele precisa que Trump seja a "Besta da Terra" (EUA falando como dragão), mas não consegue explicar como esse "dragão" é o maior aliado geopolítico do povo do sábado. Para manter a ilusão, Borges apela para a generalização: "Os evangélicos querem o domingo". Ele ignora que o bloco conservador que apoia Trump é fragmentado, plural e profundamente avesso à intervenção estatal na liberdade religiosa individual. A teocracia monolítica que Ellen White imaginou no século XIX não existe na complexidade da política americana atual.
3. Blue Laws: O Fantasma das Leis Azuis
Para dar peso à sua teoria, Borges ressuscita o debate sobre as Blue Laws — leis estaduais e municipais antigas, remanescentes do período colonial, que restringem o comércio aos domingos. Ele cita processos judiciais em Nova Jersey (como o caso do shopping American Dream) como prova de que o cerco está se fechando.
A Realidade Jurídica:
As Blue Laws nos EUA estão em declínio há décadas, sendo derrubadas sistematicamente por tribunais ou revogadas por legislaturas sob o argumento da liberdade econômica. Onde elas persistem (como no condado de Bergen, NJ), é por razões seculares de trânsito e qualidade de vida dos moradores, não por fervor religioso.
Ao citar esses casos isolados como "sinais dos tempos", Borges comete a falácia da generalização apressada. Ele pega uma disputa local sobre zoneamento e tráfego e a transforma em um prelúdio do Apocalipse. Ele não menciona que a Suprema Corte dos EUA, atualmente de maioria conservadora (nomeada por Trump), tem consistentemente ampliado as proteções para minorias religiosas no ambiente de trabalho (como no caso Groff v. DeJoy de 2023, que favoreceu um guardador do domingo, mas estabeleceu um precedente poderoso para proteger sabatistas).
O sistema jurídico americano, sob a influência conservadora que Borges teme, está na verdade tornando mais difícil para empregadores discriminarem contra quem guarda o sábado. Mas essa boa notícia é "má notícia" para o adventismo, pois uma América que protege a liberdade religiosa invalida a profecia de perseguição de Ellen White.
4. A Raiz do Ódio: Ellen White e a Conspiração Original
Por que Michelson Borges insiste nessa narrativa falha, distorcendo documentos e ignorando a realidade jurídica? A resposta não está na política, mas na teologia fundacional de sua denominação. Borges não é um analista livre; ele é um apologista preso a uma cosmovisão do século XIX.
Ellen White, a profetisa do adventismo, não deixou margem para interpretações alternativas. Em sua obra magna, O Grande Conflito, ela canonizou a teoria da conspiração:
"Os protestantes dos Estados Unidos serão os primeiros a estender as mãos através do abismo para apanhar a mão do espiritismo; estender-se-ão por sobre o abismo para dar mãos ao poder romano; e, sob a influência dessa tríplice união, este país seguirá as pegadas de Roma, calcando a pés os direitos da consciência."
— O Grande Conflito, p. 588.
"O sinal da besta é o domingo... A observância do domingo é uma homenagem a Roma."
— Testemunhos Seletos, Vol. 3, p. 232.
Para um adventista fiel como Borges, essas palavras são tão inspiradas quanto a Bíblia. Se a realidade mostra que os EUA estão protegendo a liberdade religiosa, a realidade deve estar errada ou ser um engano satânico. Se o Project 2025 fala em pagar horas extras, isso deve ser uma armadilha para o decreto de morte.
Borges opera sob um viés de confirmação teológico: ele começa com a conclusão (Ellen White está certa, a perseguição virá dos EUA/Trump/Roma) e depois tortura os fatos (documentos políticos, homilias papais) até que eles confessem o que ele quer.
5. O Custo Espiritual da Desinformação
A retórica de Borges não é inofensiva. Ela gera um custo espiritual e psicológico real para seus seguidores.
Ansiedade Perpétua: Ao pintar cada eleição americana e cada documento político como o início do fim, ele mantém os fiéis em um estado de alerta traumático. Adventistas vivem com medo de perderem seus empregos, suas contas bancárias e suas vidas a qualquer momento.
Alienamento da Realidade: Seguidores de Borges tornam-se incapazes de participar construtivamente da sociedade. Em vez de verem políticas trabalhistas como o Project 2025 como temas para debate democrático, eles as veem como maquinações demoníacas. Isso gera guetos intelectuais e sectarismo.
Idolatria de Ellen White: Ao colocar as previsões de White acima da exegese bíblica sóbria e da análise factual, Borges ensina sua audiência a confiar mais na "luz menor" (White) do que na realidade observável. A Bíblia nos instrui a orar pelas autoridades (1 Timóteo 2:1-2) para que tenhamos uma vida tranquila; Borges instrui a suspeitar das autoridades e a esperar o caos.
6. Conclusão: O "Decreto" que Nunca Chega
Há mais de 170 anos, os adventistas pregam que o "Decreto Dominical" está "às portas". Passaram-se guerras mundiais, crises econômicas, a Guerra Fria, a ascensão da internet e a pandemia global. Em cada um desses eventos, pregadores como Borges gritaram "É agora!". E em cada vez, eles estavam errados.
Agora, com Trump e o Project 2025, Borges repete o ciclo. Ele pega uma proposta de política pública obscura, mistura com citações descontextualizadas de um Papa (real ou imaginário de 2025) e serve esse prato requentado de medo para uma audiência faminta por relevância profética.
O Project 2025 não é o Decreto Dominical. Donald Trump não é a Besta da Terra (pelo menos não na caricatura teocrática que White desenhou). E o domingo não é a Marca da Besta.
Michelson Borges pode continuar gritando "Lobo!", mas a verdade é que o lobo não está na Casa Branca nem no Vaticano. O verdadeiro perigo está dentro de uma teologia que precisa inventar monstros para não ter que lidar com o fracasso de suas próprias profecias. O adventismo tornou-se refém de seu próprio cenário apocalíptico, e Borges é apenas o carcereiro que gira a chave do medo, garantindo que ninguém perceba que a porta da cela — a liberdade em Cristo — sempre esteve aberta.
Apêndice: Fontes Primárias Utilizadas e Verificadas
Para garantir a integridade desta análise, listamos abaixo as fontes originais consultadas, contrastando o que elas dizem com o que Michelson Borges alega.
1. Project 2025: Mandate for Leadership
Fonte: Heritage Foundation, 2023. Seção: Department of Labor.
O que diz (p. 589): Propõe emenda ao Fair Labor Standards Act para pagar horas extras em dias de "descanso religioso", citando o domingo como padrão cristão, mas incluindo explicitamente "o dia de descanso religioso correspondente à fé do empregado".
O que Borges diz: Alega que é o início da imposição do domingo e da perseguição, omitindo a cláusula de proteção a outras fés.
2. Fair Labor Standards Act (FLSA)
Contexto: Lei federal dos EUA de 1938 que estabelece salário mínimo e horas extras.
Análise: A proposta do Project 2025 é uma alteração técnica nesta lei, focada em benefícios econômicos (overtime), não em coerção penal religiosa.
3. Ellen G. White: O Grande Conflito
Edição: Casa Publicadora Brasileira (CPB).
Citação (p. 448, 588): Identifica os EUA como a segunda besta de Apocalipse 13 e profetiza que o país repudiará os princípios da Constituição para impor a observância do domingo e perseguir os dissidentes.
Análise: Esta é a "lente" distorcida pela qual Borges lê a política. A profecia exige que os EUA se tornem uma tirania religiosa intolerante, o que contradiz a tendência atual da Suprema Corte de ampliar a liberdade religiosa.
4. Ellen G. White: Testemunhos Seletos, Vol. 3
Edição: CPB.
Citação (p. 232): "O sinal da besta é o domingo... A observância do domingo é uma homenagem a Roma."
Análise: Define o dogmatismo sectário. Para White (e Borges), o domingo não é apenas um dia de culto "errado"; é uma aliança demoníaca. Isso impede qualquer análise racional sobre leis de descanso dominical como medidas de bem-estar social.
5. Decisões da Suprema Corte dos EUA
Caso: Groff v. DeJoy (2023).
Impacto: A Corte unânime fortaleceu os direitos de empregados religiosos (no caso, um cristão que guardava o domingo) de não trabalharem em seu dia sagrado.
Contradição com Borges: A jurisprudência atual, liderada por conservadores, cria precedentes que protegeriam um adventista de trabalhar no sábado, refutando a tese de que o conservadorismo americano visa perseguir minorias sabatistas.
6. Vídeos e Textos de Michelson Borges
Fonte: Blog Criacionismo / Canal do YouTube.
Conteúdo: Vídeos ligando Trump ao Project 2025, citações sobre Blue Laws em Nova Jersey e a homilia papal sobre o Sábado Santo.
Análise: O material de Borges é a evidência primária de sua metodologia: alarmismo, omissão de contexto jurídico e aplicação forçada da escatologia do século XIX aos eventos atuais.
Referências Bibliográficas
(2023). Project 2025: Mandate for Leadership. Heritage Foundation.
(1938). Fair Labor Standards Act (FLSA). .
WHITE, Ellen G. (). O Grande Conflito. Casa Publicadora Brasileira (CPB).
WHITE, Ellen G. (). Testemunhos Seletos, Vol. 3. CPB.
(2023). Groff v. DeJoy. Decisões da Suprema Corte dos EUA.
BORGES, Michelson (). Vídeos e Textos de Michelson Borges. Blog Criacionismo / Canal do YouTube.
(2025). Project 2025. documento político conservador.
BORGES, Michelson (). vídeos e postagens recentes. canal do influenciador.
WHITE, Ellen (). escritos originais. .
WHITE, Ellen (). O Grande Conflito. .
WHITE, Ellen (). Testemunhos Seletos, Vol. 3. .